Geral

Sarkozy e as duas Europas

Atualizada em 10/05/2007 14:34

Newton Carlos*
Jornalista

Num gesto considerado bizarro, o novo presidente da França, Nicolas Sarkozy, em janeiro deslocou-se para Londres, ainda candidato, onde prometeu aprender com Tony Blair. Falou diante de um centro de promoção de empregos, o Marylebone Job Center-Plus. Blair, a caminho de tornar-se ex-primeiro-ministro, adotou como palavra de ordem no campo social a declaração de que a Europa “precisa adaptar-se ao mundo em que vivemos”. Não fosse o desastre no Iraque, ele conservaria intacta, depois de 10 anos no poder, a áurea de fenômeno político. Já Sarkozy, expoente da direita, se afirma como tal.

Enquanto isso, as esquerdas francesas amargam um dos piores momentos da sua história, num país cioso de suas tradições revolucionárias. O vendaval burguês de 1789, a Comuna de Paris, de 1848, ano do Manifesto Comunista, a frente popular dos anos 30 do século passado, o maio de 1968 etc. O Partido Comunista francês chegou a ter 13% do eleitorado. O desempenho pessoal de Ségolène Royal, por cima da velha guarda socialista, fica como algo com grande dosagem pessoal, que não se ajusta muito bem à descrença da maioria dos franceses nas velhas fórmulas das esquerdas. A sentença nesse sentido saiu do primeiro turno, quando foram definidas as forças de cada um. Um baita de um tombo esquerdista.

Com ele, a derrota de Ségolène tornou-se inevitável. Ela não conseguiria, como não conseguiu, carregar o fardo quase que só com seu charme pessoal, em meio a um naufrágio das forças que deveriam ajudar a manter à tona sua base de sustentação. Além de Ségolène, com a legenda do Partido Socialista, se apresentaram outros seis candidatos de esquerda. Juntos, conseguiram pouco mais de 10% dos votos. Menos do que Le Pen, da ultradireita. Separados, a comparação se torna ainda mais vergonhosa. Nenhum deles ultrapassou os 2%, uma ninharia. A totalidade dos votos de esquerda, aí incluído o Partido Socialista, foi a mais baixa desde 1969.

Contabilizadas as urnas, em sua versão final, como a palavra de ordem de Blair se manifestará em seu discípulo Sarkozsy, o grande vencedor? O que significa adaptar a Europa ao mundo em que vivemos? Não se trata somente da França, essa questão vem sendo o eixo central das últimas eleições européias, sobretudo na Alemanha e depois na Suécia. Mas se trata especialmente da França, que tem um dos modelos sociais mais generosos do mundo. Estão em jogo duas concepções de Europa, a liberal e a social. A primeira sustenta que os mecanismos competitivos da globalização tornaram inviável o Estado de bem-estar social (welfare state) na dimensão alcançada depois da Segunda Guerra Mundial.

Significa decretar como enferrujados os instrumentos que acabaram com a pobreza na Europa, de modo exemplar, sem traumas revolucionários. Na Alemanha datam de Bismarck, no século 19, os princípios fundadores do que viria a ser a “economia social de mercado”. Ou um capitalismo com proteção efetiva dos que trabalham, a conjunção de vantagens do liberalismo econômico com a solidariedade social.

Nas eleições alemãs, no entanto, triunfou a opção liberal, a coligação conservadora, embora com um quase empate e a necessidade de formação de um gabinete de unidade nacional. Nada complicado. Quis a ironia do destino que o governo anterior, do SPD, o centenário Partido Social-Democrata, de tantas lutas, se visse constrangido a adotar medidas que significaram reviravolta na história social da Alemanha.

O modelo se tornou pesado, produz déficits orçamentários enormes, como o trabalho é caro, empresas alemãs emigram para países vizinhos, muito desemprego etc. As compressões colocadas em curso pelo SPD (de imediato, redução do seguro-desemprego) foram apresentadas como único meio possível de evitar um colapso total da “economia social de mercado”. Outra ironia: a coligação conservadora ganhou as eleições alemãs na esteira de manifestações populares contra a incapacidade do SPD de sustentar intacta a opção social. “É preciso que haja novo equilíbrio entre dinamismo econômico e compensação social”, diz a democrata-cristã Ângela Merkel, cujos impulsos liberais se diluíram um pouco na necessidade de coligar-se.

Ela atribui a derrota do SPD à incapacidade de explicar “por que as reformas sociais são necessárias”. Já na Suécia, cidadela da social-democracia, criou-se o neologismo “flexsecurity”. Ou “flexsegurança”. Conservar a segurança das pessoas dando, ao mesmo tempo, a flexibilidade necessária à economia. Convivência entre proteção social e economia competitiva. O não funcionamento do Estado francês tem muito a ver com as mazelas que derrotaram o SPD alemão — desemprego, déficits orçamentários, estagnação econômica etc. Quais caminhos tomará Sarkozy? Manifestações que impediram na França a “flexibilização” dos contratos de jovens deram o grau de intolerância a mudanças. Mas venceu a opção liberal e as esquerdas sofreram um vexame.

* “O artigo foi originalmente publicado no Correio Braziliense (www.correioweb.com.br), em 08/05/07.

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